quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Reflexões de uma Lésbica Negra a cerca da hiperssexualização de nossos corpos

       Defender e respeitar a agência das mulheres negras sobre seus corpos e sexualidade é uma tarefa difícil no Brasil. Sabemos que vivemos em um dos países mais perigosos para se nascer uma menina e como que o Brasil é conhecido mundialmente como um paraíso do turismo sexual. Além disso, muito conservador, racista, sexista e lesbofóbico, onde o olhar do opressor, o sujeito padrão homem branco está, a todo custo, tentando nos provar em que lugar a negra deve estar e o que a negra deve ser.
        Vivemos sob a sombra da imposição de um olhar, ou uma construção social, de que a menina negra amadurece sexualmente mais cedo e, por isso, mais cedo podem "corresponder" aos desejos dos homens. É bem cedo que experienciamos a violência da hiperssexualização, todas nós, meninas e mulheres, como corpos sem dono, um corpo de todos, para o toque, para o olhar e para o abuso, nunca nosso.
   Sendo uma mulher negra e lésbica fico pensando como essa dinâmica da hiperssexualização pode ganhar um tom ainda mais assustador sobre nós. A invisibilidade das lésbicas negras começa quando nossa existência é negada pela marca racial assim, "mulheres negras nascem para corresponder os desejos dos homens". Sendo lésbicas, entramos em um lugar muito específico da hiperssexualização, onde a lesbofobia corresponde a um potencializador para a nossa condição de marginalidade social.
       Andando na rua de mãos dadas com minha companheira, trocando afeto porque temos vontade, rapidamente somos "convidadas" para programas sexuais como se estivéssemos ali à procura disso. Se eu me amo, amo o meu corpo, amo outra mulher e exponho esse amor, eu não quero que isso seja manobrado negativamente para reforçar a violência da hiperssexualização sobre mim, até porquê:

"Somos humanos, (embora a nossa humanidade seja muitas vezes questionada) e por isto as mulheres negras são, em geral, pessoas sexuais, assim como todos as outras. Nossa sexualidade é algo que é inerente à nossa pessoa, e isso é algo que devemos ser autorizadas a reclamar livremente (ou rejeitar) sem medo de represálias ou repercussões." [https://www.geledes.org.br/hipersexualizacao-da-mulher-neg…/]

          Então eu penso: como posso me proteger disso? Me recuso a me esconder, e nem quero ocupar esse lugar de sujeito assexuado. O respeito a nós não deve ser mediado pelo controle de nossas ações pois, isso continua a reforçar toda a lógica perversa que violenta a nossa saúde mental e física e fortalece a cultura do estupro, transferindo para nós a culpa pelas violências que poderemos vir a sofrer.

"Avançar de uma forma reacionária, recusando-se a ser sexual simplesmente por causa daquilo que a sociedade pode esperar de nós (por causa de nossos corpos femininos pretas), é negar a nós mesmos uma parte de nossa própria humanidade, a fim de reivindicar a nossa humanidade. Na minha cabeça, isso é contraintuitiva. Nenhuma pessoa deve ser obrigada a rejeitar a sexualidade no serviço de sua humanidade, porque a sexualidade faz parte da humanidade." [https://www.geledes.org.br/hipersexualizacao-da-mulher-neg…/]

           O enfrentamento à hiperssexualização do corpo da mulher negra é uma pauta de muitos anos, que foi, e ainda é muito urgente!  Uma ferramenta que tem servido para nos impedir de avançar, deixando sempre lacunas em nossas vidas, exigindo de nós um esforço altíssimo para que possamos alcançar as nossas conquistas, saturando a nossa saúde mental e controlando nossos corpos.

                                                                                             - Sheila Nascimento (Sheu).

Texto de apoio: A hiperssexualização da mulher negra e a política da respeitabilidade.
<https://www.geledes.org.br/hipersexualizacao-da-mulher-negra-e-politica-da-respeitabilidade/>

Sister! blog na (re)ativa !

      Depois de uma pausa longa nas publicações no sister! blog, anuncio que volto a escrever para as minhas. 
      Nesses últimos tempos (que foram anos, rs) pude experienciar muitas coisas que me trouxeram um olhar mais amadurecido a cerca da experiência negra e lésbica nos campos diversos. Foram lutas intensas! Deixo escurecido aqui que minha intenção jamais será de resumir a experiência lésbica e negra ao meu olhar e ao o que eu vivi e vivo. Compartilho as reflexões que tive durante esse período e como que ser negra e sapatão foi fundamental para que eu pudesse questionar/analisar muitas coisas a partir de uma perspectiva muito particular. As reflexões posteriores também serão espelho disso. A cada dia aprendendo um pouco mais e partilhando para que pensemos juntas. Trago estas e boas novas a cerca do que vejo como necessárias a nós quanto categoria.
      Em pleno 2017, mesmo sabendo que, atualmente, os vídeos tenham ganhado maior apreço no ativismo online, escolhi continuar a trilhar pela escrita, esta sempre foi a melhor forma de me expressar, . 
      Escrever/ler, para mim, representa libertação. Foi como aprendi o que sei hoje e como conheci a mim mesma, lendo outras mulheres negras e lésbicas e aprendendo com elas. Foi escrevendo que comecei a falar abertamente sobre esse meu lugar refletindo com estas mulheres. Se a minha melhor arma na luta contra o racismo e a lesbofobia é a escrita, eu a usarei da melhor forma.

    Nos mais, bem vindas de novo!
    Abraços de sua sister!


                                                                                                   Sheu Nascimento (Sheila)


sábado, 29 de agosto de 2015

Dia da Visibilidade Lésbica: Visibilizar e Ocupar é Preciso!

       No dia 29 de agosto é comemorado o dia Nacional da Visibilidade Lésbica. A data tornou-se emblemática no Brasil pois foi o dia em que ocorreu o I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), no ano de 1996 no Rio de Janeiro - RJ, e foi o movimento lésbico ali presente que decidiu imortalizá-la na luta pelo direito das lésbicas.

         Depois de alguns anos, a ultima edição do evento, o 8º SENALE, veio a acontecer em 2014 nos dias 29 de maio à 01 de junho, em Porto Alegre. Foi neste ultimo SENALE que lésbicas e mulheres bissexuais de todo país se reuniram para articular a construção do II Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais Negras. Neste ano (2015), entre os dias 28 e 30 de agosto acontece em Curitiba, a 2ª edição do Seminário Nacional de Lésbicas om o tema "Afirmando Identidades Para a Saúde Integral", representando um espaço bastante valoroso para nós lésbicas e mulheres bissexuais negras.

      É necessário ressaltar a necessidade deste espaço, pois há muito tem sido dificultoso para nós ocupar muitos espaços políticos. E isso se dá muito pelo fato de sermos corpos que carregam três especificidades fortes que são indissociáveis, especificidades estas que, infelizmente, muitas vezes tem sido abordadas de forma segmentada em muitos lugares, ou de forma a deixar a desejar em muito aspectos para nós. Este número de recortes conferem a nós uma demanda ainda mais especializada, e que carregam um mundo de demandas que fazem muita diferença no nosso dia a dia. 

Fonte: Google Imagens
       Por isso, nesse dia da Visibilidade Lésbica (e não só nesse dia), é muito importante que nós levantemos nossas vozes para que nossas demandas recebam a atenção devida. A maioria de nós está nas periferias e são a maioria das vítimas da discriminação violenta provocada pela lesbofobia e bifobia. As lésbicas e mulheres bissexuais da quebrada são as que se encontram em condição de maior vulnerabilidade. Tudo isso gera consequências diretas na educação, segurança, saúde física e psicológica. O medo da violência tem feito com que muitas pretas tenham medo de vivenciar sua lesbianidade e bissexualidade gerando um imenso desgaste emocional, comprometendo muito sua vida pessoal e convivência social.´

     Ocupar os espaços organizados específicos é importante porque  neles temos a oportunidade de conhecer as experiências de cada uma de nós em nossa diversidade. Compartilhar as nossas vivências é uma arma muito importante e poderosa, através dela nós temos condições de conhecer as vivências nos diversos espaços e entender as nossas necessidades. Apesar de sermos lésbicas e mulheres bissexuais negras nós não podemos alimentar a ideia de que somos todas iguais. Somos diversas, sendo gordas, magras, "ladys" ou "butchs", jovens ou da melhor idade, mães e tantas especificidades. Ocupando nossas casas, a rua, a escola, a Universidade, o posto de saúde, dentre tantos outros, ouvir cada experiência nos garante adentrar em diversos espaços e assim discutir as realidades de forma mais representativa.

          Assim, podemos discutir o que nossas especificidades demandam e discutir quais políticas públicas precisamos estar a cobrar das instancias governamentais para que a população lésbica possa ter a garantia de uma vida livre da violência.

      Por isso, pretas, visibilizar é muito importante! Pois a falta de políticas e ações combativas é fruto dessa invisibilidade que nos é imposta e essa tem sido uma arma extremamente violenta contra a nossa existência.

       Nós não somos invisíveis! Existimos e temos o direito a vida! Temos direito a ter direitos! Temos o direito de termos nossas especificidades atendidas! Temos o direito de ter políticas públicas específicas para nós e o direito de que o estado nos proteja.

          Por isso precisamos gritar, precisamos exigir! 

          Dia 29 de agosto (e todo dia) é dia de luta! Vamos nos fortalecer e fortalecer os nossos espaços!

          A nossa existência não será pagada!

- Sheila Nascimento (Sheu)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Racismo e Seus Impactos no Desempenho Escolar das Crianças Negras

        Escrevo após reflexões diárias que tenho feito há poucos anos, sim a poucos anos, pois foi através do recente contato com o Feminismo Negro e da minha experiência neste espaço que comecei a fazer um resgate de minha história e das minhas vivencias com o racismo na infância, de poder reinterpretar o que vivi e enxergar que o racismo foi extremamente presente e responsável por muito do meu sofrimento que, na época, me era desconhecido. O racismo na infância é algo que, inegavelmente, precisa ganhar maior visibilidade nas discussões. Principalmente no que se diz respeito aos espaços de socialização como as escolas. A escola tem um lugar de extrema contradição, pois ao mesmo tempo em que este espaço propõe uma educação para formação e conscientização de cidadãos e cidadãs de forma crítica podemos observar que ela tem sido uma lugar de reforço de opressões que tem submetido as crianças negras a um desgaste emocional e a uma destruição de seus potenciais e auto estima de forma devastadora.

fonte: <http://goo.gl/xau0YT>
        A escola é onde se deposita muitas das esperanças para a transformação social. Sabemos que a educação é um meio poderoso para viabilizar mudanças relevantes e, inclusive, no combate as opressões. Mas infelizmente temos visto que este espaço tem sido palco de diversas brigas tanto nos espaços legislativos, para implementação de projetos que venham trazer para a escola o debate das opressões, quanto até mesmo dentro da própria escola, que tem sido contraditória no que diz respeito a proposta do que deveria ser uma educação transformadora. A maneira como o racismo tem se cimentado na escola é um fator que impacta de forma poderosamente negativa sobre nossas crianças negras e que se reflete nas outras fases de nossas vidas. São os sonhos que alimentamos na infância que nos impulsionam a criar diversas trajetórias em nossas vidas, é de onde vêm nossas expectativas mais bonitas e positivas que nos motivam a acreditar que podemos chegar a qualquer lugar, basta que tenhamos vontade para isso. E aí, neste momento, a gente se questiona: mas não parece óbvio que nós podemos chegar a qualquer lugar, basta acreditarmos? Em partes sim! Mas as coisas não são tão simples como parecem. E aqui enfatizando as vivências das crianças negras, algumas coisas que muito são ignoradas pela escola são essências para que elas tenham todos os seus sonhos destruídos e suas expectativas e potenciais jogados no lixo.

        O racismo age de N maneiras na infância. Dia após dia, ele se faz presente nos fazendo acreditar cada vez mais que "Não! Para nós as coisas não irão funcionar desse jeito". Desde muito novos somos obrigados a confrontar o racismo todos os dias, uma tarefa que não é fácil para ninguém na fase adulta agora imaginemos como isso atua na infância. Pessoalmente percebi aos 3 anos de idade (sim, acreditem!) a existência do racismo e foi na escola o lugar onde ele me foi "apresentado". Lembro muito nova que sempre era a única sentar-se só numa mesinha onde cabiam 4 e que minha presença nas outras mesinhas com outros colegas só era feita quando por intermédio da professora, algo que não era muito comum. Pelo costume de sempre sentar-me sozinha comecei a me isolar e a cada dia ir ficando mais e mais no canto da sala em silêncio. Consequentemente, a socialização com os "amiguinhos" era muito difícil, assistir as aulas só, lanchar só, sem brincadeiras no recreio... Acabei me acostumando a estar nessa condição. Mas há uma cena que nunca me esqueço, que foi o dia que percebi o que era o racismo: sentada sozinha numa das mesinhas de 4 lugares ao lado da janela no canto da sala que ficava no 1º andar da escola, eu comecei a pensar "porque que eu sempre me sento sozinha?", "porque que é tão difícil eu poder brincar com os meus colegas de sala?". Observando todas as interações entre eles eu me perguntava "quando é que eu vou poder estar assim também?", "será que mais ‘pra frente’ as coisas vão mudar?", "o que há de diferente?". E pensando e pensando sobre isso, durante a aula, eu cheguei a uma conclusão: olhando os meus colegas os vi diferentes de mim em sua cor, eram brancos, a professora era branca, a maioria das crianças da escola eram brancas. Lembro como se fosse hoje de ter olhado para meu antebraço, muito cabeludinho, e perceber a minha cor. Mal sabia que aquele episódio me marcaria para o resto de minha vida. E depois disso, o que se passa na cabeça de uma criança? Eu realmente não tinha noção de muita coisa, não soube o que fazer depois, ou ao menos sabia se havia o que fazer, eu simplesmente aceitei que as coisas eram assim. E aqui ressalto o porquê desse recorte nesta escola, era uma escolinha particular, que se localizava no centro da cidade. Meu pai sempre se preocupou em me dar uma boa educação escolar e se esforçou em me colocar nesta escola porque isso era algo importante para minha família. Minha casa não ficava no centro da cidade, era e ainda é num bairro periférico muito longe de lá. Nas minhas lembranças eu acreditava que tinha estudado um ano inteiro naquela escola, principalmente por ter chegado à aquela conclusão sobre o racismo e as relações entre meus colegas. Mas há alguns anos perguntei a minha mãe sobre minha estada lá, e me surpreendi quando ela me disse que estudei naquela escola por apenas pouco mais de três meses. Depois fui transferida para outra, também particular, e o racismo me acompanhou, foi nessa outra escola em que estudei por mais sete anos que tive minhas piores experiências com essa opressão. O racismo não tem tempo e nem poupa ninguém ele está em todos os espaços, está nas relações entre as pessoas, está na maneira como elas enxergam umas as outras. Tão logo entrei no convívio escolar e já o percebi.
fonte: <http://goo.gl/8Y5AC5>

        Bom, não irei me aprofundar, neste texto, em minhas experiências terríveis com o racismo na escola. Ainda é algo que me dói muito e pouco falo sobre ele abertamente e não consigo fazê-lo senão entre lágrimas, mesmo após os 25 anos de idade. Tenho encontrado forças para lidar com isso com o Feminismo Negro e com o apoio direto e indireto das irmãs pretas que me compreendem. Foi depois desse novo olhar que pude retornar à minha infância e reinterpretar todas as coisas que me aconteceram e perceber como o racismo esteve tão presente e o que ele fez comigo. Anteriormente isso já me doía, mas não consigo descrever o quanto que essa dor se multiplicou quando eu passei a me dar conta de tudo, de ver o quanto que fui "podada" nesta vida e saber que tive muito dos meus sonhos destruídos em minha infância e adolescência, de tudo que poderia ter feito e não fiz por não me achar capaz, assim como tudo que acabei fazendo para tentar contornar as coisas. Mas venho citar isso neste texto para enfatizar que tão logo conhecemos o social e o racismo se apresenta. A escola é um lugar de convivência e a escola reflete o que está além de seus muros. O racismo também está nas escolas, sejam elas públicas ou particulares, se manifestando de formas diferenciadas nestes espaços, mas está a todo tempo exercendo sua força negativa sobre as crianças negras.

fonte: <http://goo.gl/o8D1hL>
        Nossas crianças negras ao olharem para o mundo logo percebem em que condições estão os seus. Somos minoria como médicxs, juízes, advogadxs, empresárixs, doutorxs dentre tantas e tantas outras posições. A tevê nos mostra o tempo todo que o nosso lugar é na subserviência, que altos cargos e prestígio não são para nós. Estamos sofrendo com o racismo institucional e estrutural do estado em nossas comunidades, na saúde, na segurança pública, no direito, na educação... A maioria de nós está na pobreza precisando de amparo. Estamos sujeitos, a todo o momento, ao racismo enraizando na cultura brasileira que nos expõem a uma série de negatividades sobre nós mesmxs e destroem nossa auto-estima. A se ver nessas condições, que esperanças essas crianças podem cultivar em suas vidas? Faltam-lhes referências para alimentarem seus sonhos... Elas vêem poucos dos seus avançando na vida, isso quando vêem! Não quero dizer que as referências não existam, somos minoria, mas estamos aos poucos ocupando os espaços. E onde estão estas pessoas? Porque nos escondem de nós mesmxs? Porque escondem de nós as nossas referências? Porque não se falam delas? Somos gritantemente silenciadxs pelo racismo! Desta forma as crianças negras acabam por se sentirem incapazes de chegarem a algum lugar e, além disso, a pobreza força muitas delas a se afastarem da escola para trabalharem desde cedo, porque infelizmente para muitas não dá para esperar, por que a trajetória é muito longa e a fome não espera.

        Para xs que resistem na escola a tarefa não é nada fácil, você acaba precisando se posicionar diante das coisas. Você pode se posicionar frente ao racismo se reafirmando e esse é o caminho mais duro, pois o mundo está para te negar a existência e você precisa ser consciente o suficiente para enfrentar o dia a dia que se torna um campo de batalha, e o desgaste é imenso! Mas, infelizmente, muitxs acabam cedendo a alienação da "democracia racial" brasileira. É mais "fácil" se você cede para o embranquecimento. É mais "fácil" se você alisa seu cabelo, se você usa cremes para clarear sua pele. Seria "melhor" se você fizesse uma cirurgia que afinasse o seu nariz. É mais "fácil" se você aceitar a subalternidade que te impõem. É "melhor" que você aceite que aquele lugar não é para você, que aquele lugar é para o branco, e assim seguimos numa convivência social de pura "paz" entre brancos e negros. E é assim que nossas crianças negras internalizam toda a opressão que sofrem.

fonte: <http://goo.gl/9I3Bbr>
        Estou cursando Licenciatura em Biologia, e durante o período do estágio pude observar essas coisas a partir de um novo lugar: o de professora. Estagiamos numa escola periférica onde a maioria dxs estudantes são negrxs. Durante os encontros com a professora ministrante da disciplina de estágio tão grande era o descontentamento dos meus colegas ao se depararem com tantas dificuldades. Várias foram as falas sobre a frustração de se entrar na sala de aula e perceber que parecia que xs meninxs não estavam interessados em aprender alguma coisa. Lembro de um colega ter nos contado que ao perguntar aos estudantes o que eles queriam “ser na vida”, as respostas delxs foram realmente muito tristes. Ele enfatizou a fala de um garoto que o respondeu dizendo que queria trabalhar numa fábrica de calçados da cidade ganhando um salário mínimo (lugar que, inclusive, as condições de trabalho não são lá muito boas) para que pudesse juntar algum dinheiro e comprar uma moto para trabalhar como moto-taxi. Não quero aqui dizer que ser moto-taxi não é um trabalho digno, muitos sustentam suas famílias com o que provêm desse trabalho que, inclusive, se dá de forma alarmantemente informal em minha cidade. Mas a minha pergunta no momento foi "Porque eles não conseguem acreditar que poder ser mais que isso?". Ao nos contar esse depoimento alguns colegas da sala riram, até que um outro complementou "Ele vai pensar assim até o momento em que ele, infelizmente, descobrir que o tráfico pode 'oferecer' muito mais", e então todos pararam para refletir. Sinceramente, não há o que rir de uma coisa dessas. Estamos falando do quanto que a auto-estima dessas crianças está destruída. Isso é assustador! Pensando assim que esperanças elxs podem depositar na educação? Depois desse ocorrido, numa outra disciplina de estágio, onde as aulas ocorriam na mesma escola porém direcionado ao ensino médio, em uma de minhas aulas eu dediquei alguns minutos para falar sobre expectativas e sonhos com xs meus/minhas alunxs, e ao questioná-los "Porque que a gente acredita que não pode chegar em alguns lugares?" o silencio pairou na sala e eles se puseram a pensar. E então, porque que eles silenciaram e não se puseram contra minha fala dizendo que "Não, pró! Eu não acho que eu não posso!"? Era tudo que eu queria ouvir, mas, infelizmente, não foi o que aconteceu.

fonte: <http://goo.gl/7KnMB8>
           Por tudo isso, e por tantas outras coisas que é necessário levar para as escolas a questão racial. Por isso é importante nos posicionarmos diante do racismo no cotidiano, seja quando vamos ao mercado ou quando assistimos tv, em casa e na rua. Venho, também, enfatizar a importância da implementação da Lei nº 10.639/03 que obriga o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas das redes de ensino públicos e privados, e que já existe a mais de um década e ainda não foi efetivada. Essa abordagem nas escolas será importante não só para que nossas crianças saibam da importância desses elementos na construção do nosso país e trazer-lhes um novo olhar para esta questão, mas também para que as crianças negras saibam de sua importância na construção desta sociedade. Para que possam se conscientizar da situação da população negra neste país, para que debatam sobre o racismo e saibam como ele as atingem diariamente e, assim, combatê-lo. E, não menos importante, para que isso se reflita também de maneira positiva para elevação de sua auto-estima e fortalecimento de seus potenciais e semeio de seus sonhos.

Sheu Nascimento

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A Invisibilização da Lesbianidade Negra

       O mundo em que vivemos é tão diverso que mal caberia nesse pequeno texto colocar todas as identidades existentes. Seria lógico que esse mundo sendo tão diverso fosse um lugar onde todas essas pessoas tivessem a liberdade de existir independendo da sua cor, classe social, identidade de gênero, sexualidade dentre outros. Mas a realidade é que, apesar do mundo ser tão diverso, não é para todxs que a “permissão” para existir é dada. São diversas as identidades marginalizadas, mas irei falar sobre as lésbicas negras que existem e resistem todos os dias neste mundo que lhes nega o tão básico direito à liberdade de existência.

       Às lésbicas negras é negado o direito de existir porque o racismo atrelado à lesbofobia trabalhou e continua trabalhando, moldando as relações e estruturas sociais. Às mulheres negras é dada uma “permissão” de existência limitada, desde que seja na pobreza, nas piores estatísticas, na condição de objeto sexual ou na cozinha da casa grande. Já às negras que são lésbicas não há exceções, para elas não há a “permissão” para existirem.


       Como já disse num outro texto, ser lésbica negra é viver num mar de invisibilidade. A lesbofobia é um fator importante para que isso ocorra, mas quando esta se encontra atrelada ao racismo, agrava ainda mais a condição dessas mulheres. Primeiro porque o racismo, junto ao sexismo, ditou que a mulher negra só existe na heterossexualidade, pois seu corpo foi marcado historicamente por uma hiperssexualização com a finalidade de corresponder apenas aos desejos masculinos, negando a elas o direito de usufruir dos seus próprios desejos. Segundo, as mulheres negras são tidas como corpos moldados para o sexo heterossexual e para correspondê-lo de forma completamente passiva às necessidades dos homens. Isso se deve ao fato de que a heteronormatividade ligada ao racismo colocou não só as mulheres, mas também os homens negros em lugares de seres sexualmente selvagens, cujos corpos foram moldados pela natureza para representarem o sexo em sua representação mais animalesca e primitiva, seres sexualmente insaciáveis e donos de uma volúpia incontrolável. Assim, o homem negro é representado como o macho impiedoso e cruel para com sua parceira fêmea e a mulher negra como a fêmea insaciável tendo seu corpo e desejos equilibrados pela natureza para corresponder as necessidades sexuais “brutais” dos homens negros.


       Diante de toda essa construção feita sobre os corpos das mulheres negras, a pergunta é: seria esse mundo capaz de permitir a lesbianidade negra em algum lugar? Se o racismo atrelado a lesbofobia impôs uma heterossexualidade selvagem que parte de um "instinto natural" criado sobre das mulheres negras, para um controle de seu comportamento mediado pela sua anatomia, para às mulheres negras este mesmo mundo seria capaz de reconhecê-las na sua lesbianidade? O mundo as rejeita, as silencia, invisibiliza e as mata por que são mulheres negras que não “copulam” com homens, e por não corresponderem ao que o racismo e sexismo ditaram sobre seus corpos, seu comportamento sexual e sobre quem elas são.

        A partir de todos esses fatores opressivos que recaem sobre os corpos das lésbicas negras, não há nada mais afrontoso para a sociedade racista, machista e lesbofóbica do que uma lésbica negra reafirmar sua identidade. Toda violência que atinge essas mulheres vêem porque elas negam toda essa construção social feita sobre elas mesmas, pelo fato de elas negarem a invisibilidade e inexistência que lhes foram impostas gritando ao mundo que exitem através de sua reafirmação, como ser possível e político. Lésbicas negras existem e são diversas, são da "melhor idade", são gordas, são magras, são ladys ou "butchs", são
mães, são da periferia, enfim... Há um mundo de lesbianidade negra que merece atenção e precisa ser ouvida!

      Nessa semana da visibilidade lésbica escrevo esse texto direcionando a atenção para essas mulheres pois, até mesmo num dia criado para trazer visibilidade à esse grupo, elas ainda são muito invisibilizadas o que é uma consequência real de como o racismo atua agravando violência lesbofóbica sobre as mesmas.


Sheu Nascimento


terça-feira, 5 de agosto de 2014

A invisibilidade das lésbicas negras nos espaços lésbicos das redes sociais

           Meios digitais como o Facebook tem sido bastante úteis no que diz respeito a visibilidades e militâncias, e isso tem sido muito importante e empoderador nos diversos âmbitos políticos. Além de permitir a socialização de idéias, também é um espaço que permite agregar pessoas por suas afinidades políticas, permitindo a comunicação e a aproximação das mesmas, promovendo e enriquecendo o debate. Porém, é notório que neste espaço também há uma intensa reprodução de padrões excludentes, até mesmo nas páginas que se propõem a abordar as minorias e que buscam dar alguma visibilidade as categorias minoritárias, assim como combater os preconceitos e defender seus direitos. Estou falando aqui, especificamente, da grande parte das páginas lésbicas do Facebook, que procuram fazer pelas lésbicas o que as páginas destinadas às relações afetivas heterosexuais, não fazem pelo amor homo afetivo entre mulheres. Páginas estas que se propõem a combater a lesbofobia e defender os direitos da categoria mas que, por outro lado, reproduz padrões estéticos que excluem a diversidade lésbica em diversos âmbitos.

 
         Tempos atrás resolvi dar um rolê na internet com o propósito de ver como se dava a visibilidade das lésbicas negras nesses espaços digitais lésbicos e o que pude constatar foi uma imensa invisibilidade. Tempos depois, especificamente antes de escrever esse texto, fui pesquisar novamente sobre isso, agora vasculhando páginas mais populares, com mais de 20 mil seguidorxs, e vi que nada mudou. É bastante fácil perceber o mar de negação em que as lésbicas negras estão afogadas nos ambientes lésbicos do Facebook. Basta tirar um tempinho para passear por estes canais e perceber, no desenrolar da barra lateral, como fica transparecendo que todas as lésbicas são brancas, magras e elitizadas.

          A representação das pretas é pouco vista, e em algumas dessas vezes, é de forma bastante superficial. Notamos a presença delas algumas vezes quando esses espaços se propõem a falar sobre racismo, mas aí o que podemos observar é uma limitação em imagens de casais inter raciais lésbicos com descrições trabalhadas de uma forma tal qual “não seja racista, fique com uma negra” ou através de imagens isoladas, e raras, de casais afrocentrados. Fica restrito a poucos canais a preocupação com a questão estética e racial que não seja apenas branca, que não seja apenas magra e elitizada.

         A população lésbica não se compõe apenas por esses corpos eurocentricamente padronizados, muito menos acredito que das mais de 20. 000 pessoas que estão nesses espaços sejam, em sua totalidade, esses sujeitos. E porque tanta resistência com os corpos negros e gordos? Será que todas as lésbicas se sentem realmente representadas por essa padronização de corpos? Eu digo que não! Onde estão as lésbicas da terceira idade? As negras? As lésbicas da periferia? As lésbicas gordas? As cadeirantes? Elas não existem? Definitivamente, não há representação da diversidade lésbica!

           
             E o que acontece com essas mulheres que já são tão invisibilizadas, em tantos outros espaços, e quando buscam encontrar as suas semelhantes nesses espaços digitais e se deparam com essa negação alarmante de sua existência? Pontuando apenas uma de tantas, isso destrói a auto estima da pessoa que não consegue se ver como ser possível de existência, todas que não estão incluídas dentro deste padrão excludente de representatividade. É preciso entender que o fato de haver lésbicas brancas e magras nas paginas não é o problema, até porque elas também fazem parte da diversidade lésbica, o problema é achar que a comunidade lésbica se restringe apenas a essa representação, excluindo todas as outras e dar continuidade a reprodução de estereótipos que sabemos que oprime outras lésbicas de diversas formas.

            Se essa exclusão é algo tão facilmente notado nesses espaços virtuais, é porque existe fora dela, fora do meio digital. Trata-se, portanto, de um reflexo do que existe nos meios sociais fora da internet. É muito escuro ter a noção de o quanto que o padrão estético eurocêntrico, imposto às mulheres pelas estruturas sexistas, racistas e gordofóbicas do patriarcado, é internalizado e reproduzido também dentro da comunidade lésbica que, através da anulação da diversidade, visa um ideal lésbico que corresponda às expectativas que nada diferem daquilo que o sexismo fetichista, racista e gordofóbico entende pelo que são, e devem ser, as lésbicas. É preciso problematizar esses estereótipos e não reproduzi-los. Se estamos construindo esses espaços para que possamos nos sentir realmente representadas e visibilizadas, contemplar a diversidade lésbica é essencial para que possamos nos fortalecer realmente e alcançar os objetivos coletivos sem deixar nenhuma mulher para trás.


Sheu Nascimento.


fonte da imagem: Negra e lésbica/facebook

terça-feira, 24 de junho de 2014

As Dificuldades das Lésbicas Negras nos Espaços Mistos de Militância

"Dentro da comunidade lésbica eu sou negra, e dentro da comunidade negra eu sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas negras é uma questão lésbica e gay, porque eu e milhares de outras mulheres negras somos parte da comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays é uma questão de negros, porque milhares de lésbicas e gays são negros. Não existe hierarquia de opressão."  Audre Lorde

        No post anterior "Mulheres Negras e a Tripla Opressão: Racismo, Machismo e Lesbofobia" falei um pouco de como essas três opressões trabalham para produzir toda a invisibilidade que cercam as lésbicas negras. Com ressalva dos espaços auto organizados, ou seja, construídos por lésbicas negras há uma extrema dificuldade destas mulheres conseguirem articularem-se em outros espaços. Isso acontece porque, como a Audre Lorde fez questão de abordar em "Não Existe Hierarquias de Opressão", é exigido à estas mulheres que se "fragmentem" em categorias isoladas para poderem ocupar os espaços de luta. Isso acaba por sair muito custoso, pois dividir-nos em categorias nos faz ocupar estes espaços como mulheres que não são negras, negras que não são lésbicas, ou apenas como lésbicas que não são negras.

        Lésbicas negras encontram dificuldades em articularem-se no movimento LGBT, como se já não bastassem os problemas tão abertamente colocados devido a invisibilização das categorias lésbicas, bissexuais e transsexuais que muitas vezes ocorrem neste espaço, elas ainda lidam com o terrível problema da ausência ou escassez do debate racial. No final elas acabam, muitas vezes sendo obrigadas a ocuparem este espaço como lésbicas brancas, há então, a fragmentação da cor. Lésbicas negras também vão encontrar dificuldades no movimento negro, pois muitas vezes a sua questão lésbica é suprimida e elas são obrigadas a ocuparem os espaços como mulheres negras heterossexuais, fragmentando-a de sua sexualidade. De qualquer forma quando uma lésbica negra é obrigada a ocupar espaços políticos fragmentando sua identidade ela é invisibilizada pelo mesmo, ela corre o risco até de estar ajudando na construção de uma luta onde ela não será contemplada e isso é muito injusto para com estas companheiras.


        O Movimento feminista também tem grande culpa, que é histórica aliás, na invisibilização destas mulheres. A lesbianidade por si só já é invisibilizada muitas vezes do debate feminista que muitas vezes centra suas pautas nas questões das mulheres heterossexuais e isso perpetua a lesbofobia. E se formos falar da lésbica negra aí já enfrentamos outro problema, o típico "vamos deixar para falar sobre isso num espaço sobre raça". Grande parte dos espaços feministas ao menos sabe pautar a questão racial, muitas vezes se criam sub-espaços para se fazer essas abordagens e, como sempre, ficam a cargo das mulheres negras falar sobre isso. Algo meio parecido com "um espaço pra falar de mulheres e assuntos relacionados a elas e dentro deste espaço um lugar para se falar de raça". Isso é algo que realmente me deixa indignada, e aqui falando em primeira pessoa, porque parece simples sentar para discutir sobre isso e parece que mulheres negras não tem outras questões que envolvem raça a debater. Raça envolve muitas coisas! O racismo atinge mulheres lésbicas negras de forma muito complexa, envolve todos os âmbitos de suas vidas, fica difícil contemplá-las em espaços com esse tipo de metodologia. Acaba que, por final, são obrigadas a trabalhar com "resumões" da sua tão complexa realidade o que deixa muitas outras coisas e detalhes, que também são importantes, de fora do debate.


        Outro problema acontece quando feministas negras colocam suas questões e são incompreendidas pelas companheiras brancas, já não basta não se atentar devidamente à opressão racista, ainda há o problema do péssimo costume, de algumas, em deslegitimarem as feministas negras, tendo como base, (é claro!) todo seu olhar branco sobre o que se deve, ou não, ser validado em relação as negras, de acordo com o que seu histórico branco classifica como importante para as mulheres. Assim como Angela Davis, em "Mulher, Raça e Classe",  pontuou que ocorreu, no início do movimento de direitos das mulheres, no século XIX, ainda hoje, existe este ranço em relação a toda essa dificuldade das companheiras em ver como as opressões dialogam e a dificuldade em ver como elas estão tão profundamente envolvidas nisto tudo quanto as companheiras negras, até por que o racismo chega não só as negras como grupo oprimido, mas chega também às brancas como beneficiadas desta opressão.

        Enquanto estiver faltando a consciência de que todas precisam ativamente batalhar contra a opressão racista; de que machismo, racismo e lesbofobia estão diretamente ligados e de que a libertação real de todas as mulheres só virá pela luta ativa de todas as mulheres (pelas necessidades de todas as mulheres) ainda haverão correntes. Enquanto os espaços ainda exigirem das companheiras esse tipo de fragmentação de suas identidades, não estarão sendo justos para com as mesmas e a tão almejada igualdade continuará longe de nossos olhos.

    "Eu não posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de opressão apenas. Não posso me permitir acreditar que ser livre de intolerância é um direito de um grupo particular. E eu não posso tomar a liberdade de escolher entre as frontes nas quais devo batalhar contra essas forças de discriminação, onde quer que elas apareçam para me destruir. E quando elas aparecem para me destruir, não demorará muito a aparecerem para destruir você." Audre Lorde

Sheu Nascimento


Referências

LORDE, Audre. There Is No Hierarchy of Oppressions. Disponível em: <http://uuliveoak.org/pdfs/worship_9-04-09_excerpts_no_hierarchy_of_oppressions.pdf>.
DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. Disponível em:<http://plataformagueto.files.wordpress.com/2013/06/mulheres-rac3a7a-e-classe.pdf>

Imagem fonte:
Moxie. Disponível em: <http://www.dawnokoro.com/powerproject.html>