Escrevo após
reflexões diárias que tenho feito há poucos anos, sim a poucos anos, pois foi
através do recente contato com o Feminismo Negro e da minha experiência neste
espaço que comecei a fazer um resgate de minha história e das minhas vivencias
com o racismo na infância, de poder reinterpretar o que vivi e enxergar que o
racismo foi extremamente presente e responsável por muito do meu sofrimento
que, na época, me era desconhecido. O racismo na infância é algo que,
inegavelmente, precisa ganhar maior visibilidade nas discussões. Principalmente
no que se diz respeito aos espaços de socialização como as escolas. A escola
tem um lugar de extrema contradição, pois ao mesmo tempo em que este espaço
propõe uma educação para formação e conscientização de cidadãos e cidadãs de
forma crítica podemos observar que ela tem sido uma lugar de reforço de
opressões que tem submetido as crianças negras a um desgaste emocional e a uma
destruição de seus potenciais e auto estima de forma devastadora.
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fonte: <http://goo.gl/xau0YT> |
A escola é onde se
deposita muitas das esperanças para a transformação social. Sabemos que a
educação é um meio poderoso para viabilizar mudanças relevantes e, inclusive,
no combate as opressões. Mas infelizmente temos visto que este espaço tem sido
palco de diversas brigas tanto nos espaços legislativos, para implementação de
projetos que venham trazer para a escola o debate das opressões, quanto até
mesmo dentro da própria escola, que tem sido contraditória no que diz respeito
a proposta do que deveria ser uma educação transformadora. A maneira como o
racismo tem se cimentado na escola é um fator que impacta de forma poderosamente
negativa sobre nossas crianças negras e que se reflete nas outras fases de
nossas vidas. São os sonhos que alimentamos na infância que nos impulsionam a
criar diversas trajetórias em nossas vidas, é de onde vêm nossas expectativas
mais bonitas e positivas que nos motivam a acreditar que podemos chegar a
qualquer lugar, basta que tenhamos vontade para isso. E aí, neste momento, a
gente se questiona: mas não parece óbvio que nós podemos chegar a qualquer
lugar, basta acreditarmos? Em partes sim! Mas as coisas não são tão simples
como parecem. E aqui enfatizando as vivências das crianças negras, algumas
coisas que muito são ignoradas pela escola são essências para que elas tenham
todos os seus sonhos destruídos e suas expectativas e potenciais jogados no lixo.
O racismo age de N
maneiras na infância. Dia após dia, ele se faz presente nos fazendo acreditar
cada vez mais que "Não! Para nós as coisas não irão funcionar desse
jeito". Desde muito novos somos obrigados a confrontar o racismo todos os
dias, uma tarefa que não é fácil para ninguém na fase adulta agora imaginemos
como isso atua na infância. Pessoalmente percebi aos
3 anos de idade (sim, acreditem!) a existência do racismo e foi na escola o
lugar onde ele me foi "apresentado". Lembro muito nova que sempre era
a única sentar-se só numa mesinha onde cabiam 4 e que minha presença nas outras
mesinhas com outros colegas só era feita quando por intermédio da professora,
algo que não era muito comum. Pelo costume de sempre sentar-me sozinha comecei
a me isolar e a cada dia ir ficando mais e mais no canto da sala em silêncio.
Consequentemente, a socialização com os "amiguinhos" era muito
difícil, assistir as aulas só, lanchar só, sem brincadeiras no recreio... Acabei me acostumando a
estar nessa condição. Mas há uma cena que nunca me esqueço, que foi o dia que
percebi o que era o racismo: sentada sozinha numa das mesinhas de 4 lugares ao
lado da janela no canto da sala que ficava no 1º andar da escola, eu comecei a
pensar "porque que eu sempre me sento sozinha?", "porque que é
tão difícil eu poder brincar com os meus colegas de sala?". Observando
todas as interações entre eles eu me perguntava "quando é que eu vou poder
estar assim também?", "será que mais ‘pra frente’ as coisas vão
mudar?", "o que há de diferente?". E pensando e pensando sobre
isso, durante a aula, eu cheguei a uma conclusão: olhando os meus colegas os vi
diferentes de mim em sua cor, eram brancos, a professora era branca, a maioria
das crianças da escola eram brancas. Lembro como se fosse hoje de ter olhado
para meu antebraço, muito cabeludinho, e perceber a minha cor. Mal sabia que
aquele episódio me marcaria para o resto de minha vida. E depois disso, o que
se passa na cabeça de uma criança? Eu realmente não tinha noção de muita coisa,
não soube o que fazer depois, ou ao menos sabia se havia o que fazer, eu
simplesmente aceitei que as coisas eram assim. E aqui ressalto o porquê desse
recorte nesta escola, era uma escolinha particular, que se localizava no centro
da cidade. Meu pai sempre se preocupou em me dar uma boa educação escolar e se
esforçou em me colocar nesta escola porque isso era algo importante para minha
família. Minha casa não ficava no centro da cidade, era e ainda é num bairro
periférico muito longe de lá. Nas minhas lembranças eu acreditava que tinha
estudado um ano inteiro naquela escola, principalmente por ter chegado à aquela
conclusão sobre o racismo e as relações entre meus colegas. Mas há alguns anos
perguntei a minha mãe sobre minha estada lá, e me surpreendi quando ela me
disse que estudei naquela escola por apenas pouco mais de três meses. Depois
fui transferida para outra, também particular, e o racismo me acompanhou, foi
nessa outra escola em que estudei por mais sete anos que tive minhas piores
experiências com essa opressão. O racismo não tem tempo e nem poupa ninguém ele
está em todos os espaços, está nas relações entre as pessoas, está na maneira
como elas enxergam umas as outras. Tão logo entrei no convívio escolar e já o percebi.
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fonte: <http://goo.gl/8Y5AC5> |
Bom, não
irei me aprofundar, neste texto, em minhas experiências terríveis com o racismo
na escola. Ainda é algo que me dói muito e pouco falo sobre ele abertamente e
não consigo fazê-lo senão entre lágrimas, mesmo após os 25 anos de idade. Tenho
encontrado forças para lidar com isso com o Feminismo Negro e com o apoio
direto e indireto das irmãs pretas que me compreendem. Foi depois desse novo
olhar que pude retornar à minha infância e reinterpretar todas as coisas que me
aconteceram e perceber como o racismo esteve tão presente e o que ele fez
comigo. Anteriormente isso já me doía, mas não consigo descrever o quanto que
essa dor se multiplicou quando eu passei a me dar conta de tudo, de ver o
quanto que fui "podada" nesta vida e saber que tive muito dos meus
sonhos destruídos em minha infância e adolescência, de tudo que poderia ter
feito e não fiz por não me achar capaz, assim como tudo que acabei fazendo para
tentar contornar as coisas. Mas venho citar isso neste texto para enfatizar que
tão logo conhecemos o social e o racismo se apresenta. A escola é um lugar de
convivência e a escola reflete o que está além de seus muros. O racismo também
está nas escolas, sejam elas públicas ou particulares, se manifestando de
formas diferenciadas nestes espaços, mas está a todo tempo exercendo sua força
negativa sobre as crianças negras.
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fonte: <http://goo.gl/o8D1hL> |
Nossas crianças
negras ao olharem para o mundo logo percebem em que condições estão os seus.
Somos minoria como médicxs, juízes, advogadxs, empresárixs, doutorxs dentre
tantas e tantas outras posições. A tevê nos mostra o tempo todo que o nosso
lugar é na subserviência, que altos cargos e prestígio não são para nós.
Estamos sofrendo com o racismo institucional e estrutural do estado em nossas
comunidades, na saúde, na segurança pública, no direito, na educação... A
maioria de nós está na pobreza precisando de amparo. Estamos sujeitos, a todo o
momento, ao racismo enraizando na cultura brasileira que nos expõem a uma série
de negatividades sobre nós mesmxs e destroem nossa auto-estima. A se ver nessas
condições, que esperanças essas crianças podem cultivar em suas vidas? Faltam-lhes
referências para alimentarem seus sonhos... Elas vêem poucos dos seus avançando
na vida, isso quando vêem! Não quero dizer que as referências não existam,
somos minoria, mas estamos aos poucos ocupando os espaços. E onde estão estas
pessoas? Porque nos escondem de nós mesmxs? Porque escondem de nós as nossas
referências? Porque não se falam delas? Somos gritantemente silenciadxs pelo racismo!
Desta forma as crianças negras acabam por se sentirem incapazes de chegarem a
algum lugar e, além disso, a pobreza força muitas delas a se afastarem da
escola para trabalharem desde cedo, porque infelizmente para muitas não dá para
esperar, por que a trajetória é muito longa e a fome não espera.
Para xs que resistem
na escola a tarefa não é nada fácil, você acaba precisando se posicionar diante
das coisas. Você pode se posicionar frente ao racismo se reafirmando e esse é o
caminho mais duro, pois o mundo está para te negar a existência e você precisa
ser consciente o suficiente para enfrentar o dia a dia que se torna um campo de
batalha, e o desgaste é imenso! Mas, infelizmente, muitxs acabam cedendo a
alienação da "democracia racial" brasileira. É mais "fácil"
se você cede para o embranquecimento. É mais "fácil" se você alisa
seu cabelo, se você usa cremes para clarear sua pele. Seria "melhor"
se você fizesse uma cirurgia que afinasse o seu nariz. É mais "fácil"
se você aceitar a subalternidade que te impõem. É "melhor" que você
aceite que aquele lugar não é para você, que aquele lugar é para o branco, e
assim seguimos numa convivência social de pura "paz" entre brancos e
negros. E é assim que nossas crianças negras internalizam toda a opressão que
sofrem.
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fonte: <http://goo.gl/9I3Bbr> |
Estou cursando
Licenciatura em Biologia, e durante o período do estágio pude observar essas
coisas a partir de um novo lugar: o de professora. Estagiamos numa escola
periférica onde a maioria dxs estudantes são negrxs. Durante os encontros com a
professora ministrante da disciplina de estágio tão grande era o
descontentamento dos meus colegas ao se depararem com tantas dificuldades.
Várias foram as falas sobre a frustração de se entrar na sala de aula e
perceber que parecia que xs meninxs não estavam interessados em aprender alguma
coisa. Lembro de um colega ter nos contado que ao perguntar aos estudantes o
que eles queriam “ser na vida”, as respostas delxs foram realmente muito
tristes. Ele enfatizou a fala de um garoto que o respondeu dizendo que queria
trabalhar numa fábrica de calçados da cidade ganhando um salário mínimo (lugar que,
inclusive, as condições de trabalho não são lá muito boas) para que pudesse
juntar algum dinheiro e comprar uma moto para trabalhar como moto-taxi. Não
quero aqui dizer que ser moto-taxi não é um trabalho digno, muitos sustentam
suas famílias com o que provêm desse trabalho que, inclusive, se dá de forma
alarmantemente informal em minha cidade. Mas a minha pergunta no momento foi
"Porque eles não conseguem acreditar que poder ser mais que isso?".
Ao nos contar esse depoimento alguns colegas da sala riram, até que um outro
complementou "Ele vai pensar assim até o momento em que ele, infelizmente,
descobrir que o tráfico pode 'oferecer' muito mais", e então
todos pararam para refletir. Sinceramente, não há o que rir de uma coisa
dessas. Estamos falando do quanto que a auto-estima dessas crianças está
destruída. Isso é assustador! Pensando assim que esperanças elxs podem
depositar na educação? Depois desse ocorrido, numa outra disciplina de estágio,
onde as aulas ocorriam na mesma escola porém direcionado ao ensino médio, em
uma de minhas aulas eu dediquei alguns minutos para falar sobre expectativas e
sonhos com xs meus/minhas alunxs, e ao questioná-los "Porque que a gente
acredita que não pode chegar em alguns lugares?" o silencio pairou na sala
e eles se puseram a pensar. E então, porque que eles silenciaram e não se
puseram contra minha fala dizendo que "Não, pró! Eu não acho que eu não
posso!"? Era tudo que eu queria ouvir, mas, infelizmente, não foi o que
aconteceu.
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fonte: <http://goo.gl/7KnMB8> |
Por tudo isso, e por
tantas outras coisas que é necessário levar para as escolas a questão racial.
Por isso é importante nos posicionarmos diante do racismo no cotidiano, seja
quando vamos ao mercado ou quando assistimos tv, em casa e na rua. Venho,
também, enfatizar a importância da implementação da Lei nº 10.639/03 que obriga o ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana nas escolas das redes de ensino públicos e privados,
e que já existe a mais de um década e ainda não foi efetivada. Essa abordagem
nas escolas será importante não só para que nossas crianças saibam da importância
desses elementos na construção do nosso país e trazer-lhes um novo olhar para
esta questão, mas também para que as crianças negras saibam de sua importância
na construção desta sociedade. Para que possam se conscientizar da situação da
população negra neste país, para que debatam sobre o racismo e saibam como ele
as atingem diariamente e, assim, combatê-lo. E, não menos importante, para que
isso se reflita também de maneira positiva para elevação de sua auto-estima e
fortalecimento de seus potenciais e semeio de seus sonhos.
Sheu Nascimento
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